Subsídio ao 2º ENOPES
2017
“A luta de classes, fato histórico e não a afirmação teórica, é refletida no nível do feminismo. As mulheres, como os homens, são reacionárias, centristas ou revolucionárias. Elas não podem, portanto, travar a mesma batalha juntas.” (Mariátegui, Reivindicações Feministas)
A construção do feminismo classista no Brasil hoje é um tema explosivo que vem gerando em diversas frentes de luta questionamentos, repulsa ou fortalecimento de um polo de mulheres combativas. Frente a uma sociedade fortemente marcada pelo conservadorismo patriarcal e pela mercantilização crescente do trabalho e do corpo da mulher, a luta feminista classista se demonstra uma necessidade inadiável. Apesar disso, tal construção bate de frente a um movimento feminista pequeno-burguês hegemônico e terá de se afirmar em uma dura convicção frente a uma “maioria” afundada em confusões teóricas, práticas e oportunistas, sob a pena de vencer ou se arruinar no pântano da luta fraticida (homens x mulheres) e/ou reformista.
Para nós este é um debate central hoje não só na UnB como no Brasil. Atualmente dentro da esquerda e principalmente dentro de círculos universitários é comum escutarmos a defesa da importância do movimento de gênero, assim como do movimento de classe. Isto é fundamental e básico, pois o feminismo e a liberdade sexual assim como a igualdade social são elementos essenciais para qualquer organização revolucionária. Apesar disso, são costumeiramente tratados de forma separada. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Pautas de classe (“salariais”) e pautas de gênero (“liberdade corporal”).
Em nossa visão está na raiz dessa separação a concepção pequeno-burguesa de feminismo e do determinismo econômico que secundariza as opressões. Não adianta falarmos da sua transversalidade se ela não é pensada e colocada em prática. As deformações surgem dessa separação e o pós-modernismo e o marxismo reformista reproduzem este problema. A esquerda oportunista que elegeu o operário industrial como o único guia da revolução no Brasil, enxerga nos movimentos de gênero, assim como no movimento estudantil e camponês, setores pequeno-burgueses dispostos a apoiar o movimento revolucionário. Dessa forma pré-concebem a característica supostamente pequeno-burguesa (ou policlassista) do movimento de gênero e a potencializam, destinam-se assim a ser movimentos de apoio, e apenas isso, pois não é considerada a possibilidade se constituírem como autênticos movimentos de classe.
Dessa forma não se questiona a prática desses movimentos “de apoio”, simplesmente se adequa aos seus vícios pequeno-burgueses, considerados como inerentes a estes. A prática dos “Beijaços”, por exemplo, puxadas pela ANEL são defendidas enquanto ações anti-homofóbicas “inquestionáveis” apenas até os limites do movimento estudantil, já que no movimento sindical da CSP-CONLUTAS onde predomina a prática “séria” da classe, estas práticas não possuem nenhum eco, nem são incentivadas pelo mesmo partido, PSTU. Há uma clara descontinuidade nas políticas de classe e adequação a demandas pequeno-burguesas no ME e ao mesmo tempo burocratização da esfera sindical, que sob o discurso da seriedade descarta até a ação direta de classe, como um “desvio de juventude”.
Já o pós-modernismo chega a resultados semelhantes, mas por outras vias. A sua critica as meta-narrativas, grandes teorias de explicação da realidade (a exemplo o próprio marxismo), levou a afirmação da particularidade como único critério do real, abandonando a ideia de um movimento unificado ou universal, para defender a ideia de micro-revoluções particulares. Essa influência conduziu os movimentos de gênero, negro etc., a se fragmentarem e a se transformarem reféns das lutas reformistas, corporativistas, apenas por políticas públicas específicas sem vislumbrar a própria revolução social e o questionamento da ordem geral capitalista e sua superação.
A concepção de uma das principais figuras públicas do MPL-DF representa bem essa concepção autonomista pós-moderna. Em entrevista a revista Darcy Ribeiro N°6, na matéria a “Voz dos Independentes” ela afirma: “Ninguém quer derrubar o Estado, a mudança pode ocorrer por meio de outras estruturas, de uma revolução cotidiana”. Assim, continua o particular negando o geral e o geral negando o particular, gerando diversas formas de reformismos.
O resultado prático é a negação da transversalidade, ou seja, a negação do um feminismo classista. Para contrapor estes problemas é preciso ter em mente duas ideias chaves: 1° que toda particularidade traz em si um germe de universalidade e 2° que a materialidade da classe comporta as particularidades econômicas, políticas e culturais, indissociáveis, e se estende muito além do operariado industrial atingindo todos aqueles que vivem do seu próprio trabalho. Neste sentido o movimento de mulheres trabalhadoras e suas pautas, ainda que particular em relação ao conceito de mulher em geral (abstrato), é o único capaz de levar suas pautas até as últimas consequências e de fato emancipar a mulher em geral (concreto), da mesma forma que apenas o movimento da classe trabalhadora visa libertar a humanidade em geral, e não o fará sem o movimento classista de Gênero e de Raça. O que isso significa?
Significa que o momento atual nos exige pensar nas pautas transversais que sintetizem ao mesmo tempo a condição da mulher e da trabalhadora. As creches públicas, direito ao aborto e hospitais 100% públicos e gratuitos, licença maternidade, igualdade e aumento salarial, política de contraceptivos gratuitos, direito a auto-defesa, educação sexual nas escolas públicas, vacinação gratuita, fim da violência nas periferias e espaços de trabalho\estudo, etc. Pautas que hoje são esquecidas ou muito difusas na Marcha das Vadias. Mas por quê? Porque isso não interessa materialmente a um setor de mulheres que pelo fato de serem privilegiadas, por serem gerentes, patroas ou mesmo por possuírem boas rendas podem desfrutar de serviços privados e elitizados. O próprio capitalismo (e isso inclui mulheres capitalistas) se beneficia estruturalmente do machismo super-explorando as mulheres, e isto também é um fato. Por isso o feminismo classista é uma necessidade, pois só ele levará esta luta frente.
Dessa forma o particularismo (pós-moderno) e o economicismo (marxista-reformista) isolam o feminismo. Um é colocado no pedestal como única particularidade legítima, o outro como particularidade secundária. O corporativismo e a visão pequeno-burguesa dessa forma são reforçados. E não pelas vontades individuais, mas pela dinâmica do movimento que ao negar a centralidade de classe e do materialismo na prática (ainda que as vezes seja exaltado em palavras), leva o movimento a se centrar no campo do discurso, da jurisdição, do subjetivismo, se concentrando no denominador comum das “mulheres em geral” (inclusive a burguesa) se afastando e na maioria das vezes ocultando os interesses inconciliáveis das trabalhadoras.
Um exemplo disso é: de onde vem a concepção de feminismo da Marcha das Vadias, suas pautas, seus métodos e base social? Sua base social e de formulação ideológica são muito concretas, universitária e pequeno-burguesa (literalmente em muitos casos donas de estabelecimentos, exploradoras de trabalhadores). E a negligência da marcha das vadias a pautas das mulheres pobres e negras não é muito diferente da negligência que grande parte dos setores “feministas” da UnB, por exemplo, deram a demissão das trabalhadoras terceirizadas grávidas no final de 2013, ou as estudantes expulsas recorrentemente da Casa do Estudante também por gravidez (sem creches e direitos), que nunca tiveram uma campanha séria na Universidade de Brasília, a não ser pela luta travada pela Oposição CCI, ainda que limitada.
A condição de classe, portanto é o que permite a transversalidade, unindo homens, mulheres, negros, brancos, indígenas, LGBT’s, entre outros por uma bandeira comum: a luta contra a exploração e a dominação, da qual todas as opressões são influenciadas e potencializadas, quer queira quer não. A forma de se quebrar o isolamento e o reformismo são unificar e ao mesmo tempo formular pautas e métodos específicos. Unificar sob duas perspectivas: a) Unir organizações feministas, étnicas, sindicais e estudantis, numa Central de Classe Sindicalista Revolucionária (que é o que defende a RECC); b) Unir a condição de classe com a condição de gênero.
A diferenciação dos métodos também é uma trincheira de classe, pois enquanto para a mulher burguesa o mundo ilustrado, da jurisdição ou da linguagem universitária, é seu campo por excelência de “combate” e privilégio, onde suas demandas são em parte atendidas e garantidas, já para as mulheres trabalhadoras este mundo não passa de ficção, só as greves, as manifestação de rua, ocupações, podem garantir a conquista das reivindicações concretas. Não adianta, portanto, lutar apenas pelas leis (legalização do aborto, por exemplo), é necessário a reivindicação do sistema público e gratuito de saúde, e seguir na luta pela transformação radical da base material da sociedade.
A luta contra as opressões deve assim ser pauta de toda classe travando um combate cultural interno e estrutural para fora. É necessário para isso separar o conceito de contradição do de antagonismo. Mulheres e homens trabalhadores vivem uma contradição cultural (nem por isso menos material) que não será superada pela destruição de um dos lados, mas sim com a luta pela igualdade, a autocritica e a disseminação de uma cultura e prática libertadora. A exploração de classe é um antagonismo (irreconciliável), que busca a destruição da burguesia, se desenvolvendo para um combate frontal, uma guerra física, dada que estão baseadas em relações de propriedade, interesses e posições econômicas (que inclusive fortalecem o machismo).
O protagonismo da mulher de forma geral é então entendido por nós, não como o de qualquer mulher, mais o da mulher trabalhadora, de seu programa e de seu método. A ideia da representatividade simbólica da “mulher em geral” é diferente de nossa perspectiva de protagonismo. Primeiramente porque o objetivo é garantir o protagonismo feminino na luta pela revolução e não na representatividade dentro das instituições burguesas (parlamento, diretoria de empresas, polícias). Segundo, um avanço não se dá pela simples ascensão de uma mulher ou oprimido ao poder, ou pelo monopólio da fala e do espaço, e sim do conteúdo de seu programa e de seus métodos (o feminismo classista), e isso pode ser feito por mulheres e homens conjuntamente, mas nunca sem as primeiras. Isto é tão dramático que o capitalismo neoliberal vem se utilizando recorrentemente do discurso e da representação simbólica dos oprimidos (vide Lula o Operário, Dilma a Mulher e o Obama o Negro), para perpetuar a própria opressão sobre essas “minorias”, farsa que a esquerda e setores autonomistas muitas vezes reproduzem na sua ação cotidiana, de forma inocente ou oportunista para a perpetuação de seu próprio poder (como visto na ação dos governistas na greve das IFES de 2012).
Por fim, aponto que é a questão material (entendido em seu sentido amplo e não apenas econômico) que permite tirarmos da marginalidade do “discurso inclusivo”, da ideologia neoliberal, a exploração e o machismo escamoteado nas ações patronais, instituições e nas causas sociais que levam o povo a se embrutecer e a se oprimir mutuamente. Dessa forma, o feminismo classista é a perspectiva transversal e nosso objetivo deve ser no plano geral unificar e não dividir homens e mulheres. É necessário dar continuidade a esta construção e aprofundá-la, desenvolvendo uma verdadeira ruptura com o feminismo burguês e atacar a farsa do discurso da “inclusão”.
Viva Lucy Gonzales Parsons, líder operária negra!
Viva Louise Michel, líder das barricadas da Comuna de Paris!
Viva Fanya Baron, exemplo de abnegação e luta!
Viva Espertirina Martins lutadora do movimento operário brasileiro!