O ano de 2020 se inicia com uma série de ataques contra os Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Na madrugada do dia 1º de janeiro, ocorreu uma ofensiva de pistoleiros contra a retomada Laranjeira Nhanderu, no município de Rio Brilhante. A comunidade também suspeita do envolvimento de igrejas neopentecostais no ataque. A Ogá Pysy, Casa de Reza erguida no local, foi incendiada e parcialmente destruída. Famílias também foram atacadas em suas casas com tiros de armas de fogo.
Esta parte de Laranjeira Nhanderu foi recuperada pelos Guarani e Kaiowá, em 2018, a partir de um grupo de mulheres guerreiras que marcharam desde uma porção do mesmo tekoha (território ancestral, “lugar onde se é”) que já estava sob controle indígena em área de floresta (reserva legal no interior de fazenda de soja). Na época, motivados pelas condições anteriores, as famílias procuraram uma porção do seu território ancestral em que fosse possível plantar. Em 2019, a Ogá Pysy (Casa de Reza) foi erguida e justamente contra este importante símbolo de resistência e espiritualidade ocorre o primeiro ataque do ano. (ver breve histórico de Laranjeira Nhanderu no comunicado da FOB-MS)
Na sequência dos acontecimentos, as retomadas Nhu Vera Guasu, Nhu Vera Aratikuty, Nhu Vera e Boquerón em Dourados sofreram brutal ataque de fazendeiros, seguranças privados e forças militares (PM e Departamento de Operações de Fronteira – DOF), resultando em um dos piores cenários de violência desde o avanço da retomada de Nhu Vera, em julho de 2019. Desde então, nas margens da Reserva Indígena de Dourados, inúmeras ofensivas do latifúndio, em conjunto com empreendimentos imobiliários na região, vêm utilizando táticas terroristas de guerra para atacar as comunidades. Foram dois ataques diferentes, dos quais resultou a morte de Ronildo Martins Ramires: o jovem de 14 anos foi atingido por 18 tiros de bala de borracha, sendo logo após jogado a uma fogueira, onde teve 90% do corpo queimado. Dias depois, o companheiro morreu, não resistindo aos ferimentos. Seu martírio se soma à extensa lista de companheiros e companheiras assassinados pelo Estado brasileiro e pelo latifúndio.
Na quarta-feira, dia 29 de janeiro, ocorrem novos ataques, dessa vez contra a retomada Avae’te, na mesma região das recuperações de terra citadas no parágrafo anterior, fronteiriças à reserva indígena de Dourados. Na ocasião, os Guarani e Kaiowá acusam a Força Nacional de realizar o ataque com armas de fogo. É possível visualizar o ocorrido em vídeo no site do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
É preciso, entretanto, abrir um parágrafo para denunciar as contradições que envolvem não só o CIMI, como também outros movimentos, como o Movimento Sem Terra (MST) e o Coletivo Terra Vermelha. Estas organizações, em conjunto com as forças da ordem do Estado burguês, pedem em documento emitido pela Defensoria Pública da União (DPU) a presença da Força Nacional para “conter” o conflito entre latifundiários e indígenas. Com todo respeito aos militantes sinceros e críticos das organizações citadas, nos colocamos veementemente contrários à qualquer conivência com os exércitos coloniais do Estado terrorista, assassinos do povo e serviçais do latifúndio. Os ataques da Força Nacional sobre os Guarani e Kaiowá não surpreendem, são um algo premeditado no bonde da história de etnocídio pelo Estado brasileiro. Lembramos também a presença de Nabhan Garcia em Dourados, atual Secretário de Assuntos Fundiários, e ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), responsável pelo assassinato de Chico Mendes, no contexto dos ataques. Relembramos ainda a reunião convocada pelo Sindicato Rural de Dourados, para o dia 29 de janeiro, reunindo criminosos corresponsáveis por inúmeros massacres contra indígenas no Mato Grosso do Sul, com a presença da Força Nacional, a DOF, políticos e fazendeiros locais, assim como a Federação da Agricultura e Pecuária Mato Grosso do Sul (FAMASUL).
FORNECIMENTO DE CESTAS BÁSICAS INTERROMPIDO
Neste mesmo contexto, no início do ano, ocorre a proibição de distribuição de cestas básicas pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para terras indígenas não-demarcadas, através de despacho de instâncias superiores da Funai em Brasília, ou seja, uma política de extermínio para trazer a fome para as retomadas de terra, como forma de tentar sufocar e impedir a continuidade da luta pela tekoha. O corte no fornecimento está também relacionado aos novos quadros que assumem posições estratégicas no órgão, a exemplo do novo presidente da FUNAI Marcelo Augusto Xavier da Silva, Delegado da Polícia Federal e assessor da CPI da FUNAI, que criminalizou indígenas, antropólogos, indigenistas e movimentos sociais. Foi uma indicação relacionada à Nabhan Garcia.
A coordenação da FUNAI no Mato Grosso do Sul, por sua vez, foi assumida por José Magalhães Filho, também militar que afirmou em entrevista para jornal vinculado à rede Globo: “nós somos instrumento de consecução dos objetivos desse governo central, que é a integração do índio à sociedade brasileira” , reavivando os discursos que demarcaram a lógica do indigenismo de Estado integracionista que vigorou durante a ditadura militar. Durante a ditadura militar brasileira, foram mais de 8350 indígenas assassinados pelo Estado, segundo os dados da Comissão Nacional da Verdade.
CONTRA O “INTEGRACIONISMO”: LIBERTAR A TERRA E DESTRUIR O LATIFÚNDIO!
A militarização da FUNAI, somada ao agravamento da violência contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul segue uma tendência nacional de avanço do capital sobre o campo e as florestas, em uma tentativa de integrar os territórios indígenas e de comunidades tradicionais às cadeias produtivo-extrativas. As retomadas insurgem como uma potente barreira – espiritual, material e ideológica – contra as grandes empresas, o terrorismo de Estado, o paramilitarismo e o colonialismo. O integracionismo é uma máscara assumida pelo Estado que tenta justificar a abertura de grandes obras, projetos extrativistas de mineradoras e cultivo de transgênicos em terras indígenas, como demonstra o conteúdo do PL 191/2020 enviado ao Congresso pela presidência.
Com o fim das demarcações, o esgotamento das instâncias institucionais, que já nasceram condenadas aos limites do próprio funcionamento do Estado e do capital, não há alternativa senão a libertação dos territórios para construção da autonomia política, econômica, social e cultural, retirando das garras do Estado e da burguesia do agronegócio toda vida que é capaz de florescer nestas terras violentadas pelos colonizadores. Não basta demarcar sem interferir no modo de produção capitalista: é preciso destruir o capital e o latifúndio para libertar a terra. Os ataques do início do ano desenham um cenário estremecedor para a luta dos povos indígenas, e em especial dos Guarani e Kaiowá, que permanecem de pé por um outro mundo.