No dia 13 de maio de 1881, há 140 anos, nasceu Afonso Henriques de Lima Barreto, mais conhecido como Lima Barreto. Lima Barreto escreveu importantes obras da literatura brasileira, e também diversas cartas, crônicas e artigos. Veio a falecer no ano de 1922.
O seu engajamento político muitas vezes é desconhecido ou apresentado de forma superficial. Lima Barreto sempre foi próximo a importantes figuras do sindicalismo revolucionário desde a sua juventude. Conheceu José Oiticica, Edgard Leuenroth, dentre outros. Escreveu um artigo para o primeiro número do jornal A Voz do Trabalhador, órgão oficial da Confederação Operária Brasileira (COB) e colaborou com outros jornais anarquistas e sindicalistas. Apoiou publicamente a grande Greve Geral de 1917, a Greve Geral e a Insurreição Popular no Rio de Janeiro em 1918, defendeu a Revolução Russa de 1917, criticou duramente a escravidão, a opressão sobre o povo negro, os imigrantes pobres e o povo trabalhador de forma geral.
Em homenagem a esse importante intelectual e trabalhador brasileiro publicamos aqui o texto “Sobre a Carestia” publicado, não por acaso, em 1917, ano da grande Greve Geral. Nesse artigo Lima Barreto faz uma dura crítica aos capitalistas e ao Estado e defende o uso da violência pelos oprimidos para lutar contra a carestia de vida. O artigo foi retirado do livro “Antologia de artigos, cartas e crônicas sobre trabalhadores”.
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SOBRE A CARESTIA
As várias partes do nosso complicadíssimo governo se têm movido para estudar e debelar as causas da crescente carestia dos gêneros de primeira necessidade à nossa vida. As greves que têm estalado em vários pontos do país muito têm concorrido para esses passos do Estado. Entretanto, a vida continua a encarecer e as providências não aparecem.
Não há necessidade de ser muito enfronhado nos mistérios das patifarias comerciais e industriais, para ver logo qual a causa de semelhante encarecimento das utilidades primordiais à nossa existência.
Nunca o Brasil as produziu tanto e nunca elas foram tão caras. O plantador, o operário agrícola continua a ganhar o mesmo; mas o consumidor as está pagando pelo dobro.
Quem ganha? O capitalista. Ele e unicamente ele, porquanto o fisco mesmo continua a receber o mesmo ou quase o mesmo que antigamente.
O açúcar, por exemplo, que descera de preço nestes últimos anos, é um caso típico da ladroeira capitalista, da mais nojenta.
Os usineiros e os seus comparsas, comissários, etc. no intuito de esfolarem a população nacional ou residente no Brasil, descobriram que o melhor meio de o fazerem era vender grandes partidas, para o estrangeiro, pela metade do preço porque as vendem aqui.
Semelhantes patifes, com umas teorias econômicas da Escola do Pinhal de Azambuja,
dizem que, se não fizessem tal coisa, seria a débâcle do seu negócio. Isto veio escrito nos jornais, com aquela arrogância peculiar a fazendeiros, especialmente os de cana, e fabricantes de açúcar. É o que eles chamam o “alívio”.
Nada mais absurdo e mais besta. Todo o fito do aperfeiçoamento das nossas máquinas, dos nossos processos industriais (é o caso do açúcar), tem sido produzir muito, rapidamente, para vender barato, de modo que o lucro, por mais insignificante que seja em um quilo, somado nas toneladas, dê, por fim, um lucro fabuloso.
O Portela, aí da Casa Colombo, sabe bem disso, no tocante ao seu comércio, pois afirma que a sua divisa é “vender muito, para vender barato”.
Se o açúcar que eles vendem à República Argentina fosse lançado nos nossos mercados, o pequeno lucro que desse, junto ao lucro obtido com nossos mercados, o pequeno lucro que desse, junto ao lucro obtido com aquele que até agora fica aqui, seria suficiente para remunerar o capital mais judeu deste mundo.
Não é necessário ir buscar autoridades em finanças e economia política, para demonstrar coisa tão evidente.
Entretanto, a ganância, o cinismo, a desfaçatez, a alma de piratas dos caciques do açúcar não querem ver isto e esfomeiam os seus patrícios. Por falar em pátria…
A pátria é um laço moral, dizem; mas, quando os Zés Bezerras, os Pereiras Limas e outros rompem esses laços, de forma tão bucaneira, como acabo de mostrar no caso do açúcar, de que modo posso mais respeitá-los, a eles, nas suas vidas e nos seus haveres? Creio que me acho desobrigado de toda e qualquer prisão moral com semelhantes patifes.
Em presença deles, devo proceder como em presença do salteador que me toma os passos, em lugar ermo, e me exige os níqueis que tenho no bolso. Só há um remédio, se não quero ficar sem os magros cobres: é matá-lo.
Não há necessidade, entretanto, de o fazer, na parte relativa a esses cínicos do açúcar e outros. Semelhante gente não se incomoda em morrer: incomoda-se em perder dinheiro ou em deixar de ganhá-lo. É tocar-lhes na bolsa, que eles choram que nem bezerros desmamados.
O povo até agora tem esperado por leis repressivas de tão escandaloso estanco, que é presidido por um ministro de Estado. Elas não virão, fique certo; mas há ainda um remédio: é a violência.
Só com a violência os oprimidos têm podido se libertar de uma minoria opressora, ávida e cínica; e, ainda, infelizmente, não se fechou o ciclo das violências.
Quando um ministro de Estado, como o Rufino o é, cuja missão, na especialidade do seu departamento, é prover às necessidades gerais da população, atender aos seus clamores, impedir a opressão de uma classe sobre as demais, regular o equilíbrio das forças sociais, se faz caixeiro ou chefe de trust, para esfomear um país, não há mais para onde apelar senão para a violência, para a brutalidade da força!
Não há outra esperança, pois eles dominam todo o mecanismo legal – o Congresso, os juízes, os tribunais – e tudo isto só fará o que eles quiserem, e seria vão socorrermo-nos desse aparelho.
É doloroso chegar a semelhante conclusão; é doloroso ver tanto sangue generoso derramado, tanta lágrima chorada, tanto estudo, tanta abnegação, tanto sacrifício, tanta dor de grandes homens e daqueles que os amaram e apoiaram, é doloroso, dizia, ver acabar tudo isto nas mãos de um tipo alvar, idiota, ignorante, cúpido e cínico, como Zé Bezerra, para, com o trabalho de tantas gerações e a meditação de tantos sábios, trabalho e meditação que estão nas máquinas de suas usinas e nos processos do fabrico, esfomear um país e rir-se de sua miséria.
Nós sabemos por que ele ri-se; é porque conta com a força armada para apoiar o seu saque legal.
Mas, Bezerra, é bom não contar com ela sempre. O soldado obedece sem saber, talvez; mas o oficial sabe ler e, quando se convencer de que pode comprar o teu açúcar ao quilo, dando-te lucro, por $500, pois tu por esse preço o vendes ao argentino, ele não comandará a descarga sobre os desgraçados que forem expropriar os teus armazéns de açambarcador ministerial.
Rira mieux qui rira le dernier…
O que fica aí dito pode-se aplicar ao feijão, com Matarazzo à frente; à carne verde, com o açougueiro Antônio Prado e o seu caixeiro-viajante Graça Aranha, ambos à testa da especulação indecente das carnes frigorificadas, fornecidas, a baixo preço, aos estrangeiros, enquanto nós, aqui, pagamos o dobro pelo quilo da mesma mercadoria; e assim por diante.
Meditem que eles mesmos ou os seus prepostos são os fabricantes das leis e, à sombra delas, estão organizando esse torpe saque à miséria dos pobres e à mediania dos remediados, sem dó nem piedade, sem freio moral, religioso, filantrópico, patriótico, cavalheiresco ou outro de qualquer natureza; e digam se podemos nós outros, que sofremos as agruras da sua crueldade gananciosa, da sua avidez cínica, da sua imunda traficância, ter em relação a eles qualquer prisão por laços morais, religiosos, patrióticos, cavalheirescos ou outros quaisquer?
Todos eles estão rompidos, todos eles não existem mais, e toda e qualquer violência, sobre eles ou sobre as suas propriedades, é justa e legítima.
É, porém, preferível sobre os teres e haveres deles, antes do que sobre as suas pessoas, pois só assim esses Shylocks chorarão como bezerros ou bezerros desmamados.
A nossa República, com o exemplo de São Paulo, se transformou no domínio de um feroz sindicato e argentários cúpidos, com os quais só se pode lutar com armas na mão. Deles saem todas as autoridades; deles são os grandes jornais; deles saem as graças e os privilégios; e sobre a Nação eles teceram uma rede de malhas estreitas, por onde não passa senão aquilo que lhes convém. Só há um remédio: é rasgar a rede à faca, sem atender a considerações morais, religiosas, filosóficas, doutrinárias, de qualquer natureza que seja. Alea jacta est…
Publicado em O Debate, em 15 de setembro de 1917.