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O GERMINAL é uma publicação da Oposição CCI – Combativa, Classista e Independente ao DCE da UnB.
Uma onda conservadora tem “colocado às manguinhas de fora”. As opressões se reforçam diante do crescimento dos movimentos contra opressões e da esquerda combativa. São muitas as práticas de racismo, machismo e homofobia encobertadas por entidades religiosas e pelo Estado e empresas. Em meio a esta reação conservadora, entretanto, denúncias legítimas tem sido destratadas e outras desvirtuadas para dar lugar a calúnias e fofocas. Este é um velho artifício de depreciação moral nos movimentos políticos e sociais, ciclicamente presente no movimento estudantil da UnB.
Como reagimos quando surgem denúncias de machismo e homofobia entre os estudantes? Em se tratando de uma grave acusação, como distinguir calúnias de legítimos relatos? Embora a luta por novos valores e práticas seja diária pois sua ocorrência domina a sociedade, desvio de conduta, como reprodução de autoritarismo e opressões, não pode ser normalizado: deve ser retificado! Mas será que basta uma acusação para alguém ser declarado culpado? Quais pressupostos teórico-metodológicos têm sido usados para suprimir, por exemplo, investigações e direitos de defesa? E quando se constata as contradições no seio do povo, como resolvê-las?
As organizações não podem ser coniventes com o machismo
Por um longo tempo os militantes da Oposição CCI/RECC sofreram a tipificação de machistas e outros estigmas. Consideramos algumas justas, outras não. Recentemente, tivemos conhecimento de duas denúncias realizadas em uma reunião exclusiva de mulheres no CASO (dia 27/08/14) que envolvem militantes nossos. São acusações muito graves e não é permitido, nem a nós nem a ninguém, censurar sua investigação e a justa resolução. Uma é de agressão sexual durante um relacionamento em 2012; a outra é de violência física de um militante contra sua ex-namorada há sete anos. Tivemos compromisso em apura-las e publicá-las aqui. Apesar da extensão, pedimos a leitura até o fim, sem o qual todo tratamento dado ao caso será parcialmente compreendido.
Não podemos omitir o impacto sofrido. Repudiamos o coleguismo e não seremos coniventes com os erros – embora algumas/alguns queiram isso, estas pessoas estão mais preocupadas/os em reforçar um estigma do que superar as contradições machistas do povo. Logo, não são admitidos os desdobramentos autoritários, injustos e – vindo de algumas personalidades – de revanchismo contra nosso coletivo. Contamos com a atenção daquelas pessoas que querem nossa posição e, embora pressionadas, não tomam a parte pelo todo: infelizmente, não esperamos tal atitude da minoria antidemocrática e sectária.
Dizem que somos um poço de agressores, de coniventes, de misóginos. Que cometemos pressão para que denúncias sejam retiradas. Falam que acobertamos diversos casos de agressão de gênero. Evitam citá-los, evidente, pois isso revelaria suas mentiras. Para que não sobre dúvidas, nós falaremos. Hoje, cinco denúncias que possuem fundamento foram e estão sendo tratadas em nosso coletivo: duas delas estão em abeto; uma terceira resultou no afastamento e demais punições de um militante; e as duas atuais denúncias citadas. Caso haja outras, que as exponham juntamente às suas evidências. Nós as apuraremos. Caso contrário, não é difícil suspeitarmos de calúnias.
É verdade, muitas outras “acusações” machistas foram feitas. Mas não poderíamos dar importância a maioria delas quando estas não passavam de leviandades. Diziam: “Eles são machistas pois vão a estádios de futebol, são hooligans”. “Aquele é machista pois não olha no olho daquela mina quando conversa”. “É machista pois cumprimenta com beijo no rosto, e não com aperto de mão”. “Aquele outro não cumprimenta aquela menina, é machista”. “Ele alterou o tom de voz naquela assembleia contra a fala de uma menina”. “É machista pois não concordaram com paridade de gênero”. “Eles defendem um feminismo classistas, são a favor da agressão contra mulheres de classe média”. “Aquela mina é machista pois segue a linha feminista dos caras”. “São machistas pois tem mais homens do que mulheres”. Prestar-nos-íamos a debater cada uma delas, mas não com vários de seus pronunciadores que agem por má fé.
Temos um compromisso com a luta pela emancipação dos explorados e oprimidos. Este é, antes, um compromisso com a verdade. Não admitimos semelhante conduta machista em nosso meio e, sempre que insistam em ocorrer, trataremos de retificá-las. Aprendemos e apreenderemos com a prática, sempre mais viva que a teoria.
A Oposição CCI/RECC não é uma bolha, tão pouco a única organização de esquerda com casos de militantes que reproduzem opressões. A vida e a sociedade machista são muito maiores! No entanto, a RECC é desde sempre estigmatizada como uma organização machista, por excelência. Mesmo que quaisquer homens sejam passíveis de cometer agressões, não só aqueles de nossa organização. Consideramos o estigma um ataque político. O projeto ideológico só pode ser o de desmoralizar e desintegrar nossa organização! Não somos um grupo político perfeito e fazemos a autocrítica quanto a casos considerados “não solucionados”, ou tratados com morosidade! Aprendemos cotidianamente com a prática! Apuraremos as denúncias machistas que nos couber, como temos feito com seriedade, justiça, e longe de coleguismos!
A primeira denúncia: violência sexual
Inicialmente relatada de forma anônima em uma rede social, tornou-se pública com a voz da própria vítima. Considerando estas exposições, a Oposição CCI convocou seus militantes para uma reunião, na qual o acusado daria explicações. Ainda que fosse importante, respeitamos o direito da vítima que não quis ser abordada, e informou que sua versão estava disponível na rede social. Logo, este foi o principal material dela com o qual pudemos apurar. Após a leitura desta denúncia, foi concedido ao acusado direito de expor sua versão, onde em seguida foi sabatinado. A partir daí, fizemos a interpretação dos fatos e o julgamento – nestes momentos a fala do acusado foi retirada para não se sobrepor ao espaço limitado que teve a outra parte. Duras críticas foram feitas, pois o direito a ampla defesa não significa “passar a mão na cabeça”.
A denúncia da vítima relata que, em uma dada relação sexual iniciada de forma consentida por ambas as partes, seu parceiro havia desrespeitado um pedido de que parassem devido à dor no ato sexual. Em ambas as versões, assumem que ele teria insistido na continuidade. Conforme se pode compreender no relato das partes, após a insistência, uma falta de reação da vítima foi interpretada como permissão para continuidade. Aqui resulta o erro.
Compreendemos que esta situação coloca-se entre o limiar do que se pode considerar mútua negociação no ato sexual e, de fato, uma violação sexual – o que ocorreu. Quer dizer, o fato de que não haja por parte da mulher uma reação diante da insistência masculina não retira o peso da construção patriarcal da sociedade, que tornam as mulheres objetiva e subjetivamente subserviente – sendo o silêncio um dos sintomas. E, neste caso, não retira as próprias experiências individuais da mulher que a levam a não reagir, pois uma coisa é certa: ela não é culpada por não insistir em parar.
A insensibilidade em perceber esta assimetria de gênero e reforçar o papel sexista, onde o homem deve obter prazer a despeito do prazer feminino, passou do consentimento à violação sexual. A insistência masculina tende a ser, portanto, o ponto de reforço onde a mulher acaba cedendo a pressão momentânea reativando a sua condição histórica de subalternidade na sociedade patriarcal.
Sabemos que no senso comum do povo, para militantes ou até acadêmicos, o imaginário sobre o “estupro clássico” pode ser descrito, grosso modo, da seguinte maneira: um homem desconhecido aborda uma mulher em um terreno baldio e violentamente a viola sexualmente. A vítima se debate, pede socorro, mas indefesa é brutalmente estuprada. Nestes casos o agressor possui, em geral, um perfil psicossocial bastante distinto que pode o levar a reincidências. No entanto, as estatísticas de violência sexual demonstram que a maioria dos estupros são cometidos por familiares e pessoas próximas às vítimas. Por uma série de fatores, muitas vezes materiais ou emocionais, a mulher permanece se relacionando com o parceiro após abusos ou com a rotina destes.
Também sabemos que, dentro do feminismo, quando se diz “estupro”, a intenção política e, historicamente justa, é a de não eufemizar, silenciar qualquer tipo de violação/agressão contra as mulheres. Afinal, sabe-se que socialmente e na justiça burguesa, agressões psicológicas e mesmo físico-sexuais podem ser percebidas como “leves” e tendem a ser atenuadas em termos de sua gravidade. Os arquivamentos de processos envolvendo violência contra a mulher estão aos montes nos tribunais! A justiça burguesa é ineficiente!
Sendo assim, a Oposição CCI/RECC compreende que nosso militante de fato utilizou de sua posição de privilégio masculino e rompeu o limite da liberdade sexual durante uma relação, mesmo que inicialmente consentida. Uma relação sexual deve ser prazerosa, principalmente para a mulher (socialmente construída como aquela que deve “agradar” ao homem e ser submissa na cama). Isso deve envolver a constante negociação de ambos os parceiros quanto ao contato físico e afetos. Violar a liberdade sexual, mesmo de forma não consciente, é uma atitude inconcebível e incoerente com os princípios políticos que defendemos enquanto organização feminista classista! Por isso, após julgarmos a denúncia, determinamos seu imediato afastamento da organização por tempo indeterminado, afastamento dos espaços e cargos assumidos no movimento estudantil, bem como a publicação de uma autocrítica e retratação, uma vez que o mesmo compreendeu e concordou com os termos da análise aqui expressos – quer dizer, seu erro.
Nossa intenção não é a de suavizar a agressão. Mas, a defesa de que os casos sejam tratados de maneira personalizada. Em casos demasiadamente abusivos ou reincidentes poderia ser justo o uso da violência. O próprio povo o faz! No entanto, dentro do feminismo universitário, muitas vezes observamos escrachos públicos e irresponsáveis com os sentidos e consequências que podem causar. São menos ainda comprometidos com a classe trabalhadora, desprovido de qualquer noção restauradora.
Dizer “estuprador” nas periferias pode significar um “estupro clássico”, onde a punição pode ser até a morte! O caso em questão é digno de sanções e, acreditamos que a desmoralização generalizada e pública já foi em grande parte punitiva. Não é justo dar uma sanção ao caso como se esse fosse um “estupro clássico”, enquanto outros casos recorrentes e muito graves sequer têm sido colocados em destaque. Cotidianamente, então, ter-se-ia que matar todos os homens, uma ação política deliberadamente proto-fascista. Isso pode ser comparável ao período inquisitório, ou aos “justiceiros” que aparecem diariamente nos jornais. Muito menos deve ser competência dos aparelhos repressores do Estado, ineficientes e limitados.
A segunda denúncia: violência física
A segunda acusação citada foi levada a público por uma terceira pessoa, e não pela pessoa considerada vítima. Entendemos que pelo fato desta terceira pessoa não ser testemunha ocular do ocorrido, sua versão oral seria absolutamente insuficiente para interpretar e julgar. Uma vez que não tivemos acesso ao legítimo relato da pessoa considerada vítima, apesar deste ser lido em uma segunda reunião exclusiva de mulheres ocorrida desta vez no CASESO (dia 01/09/14), nem tivemos acesso ao depoimento de outras duas testemunhas oculares, não se teve condição de uma idônea investigação. Entendemos que é preciso fazê-la, queremos apurar este caso, e pedimos colaboração das partes.
Mas alguns fatos se revelam problemáticos deste caso. Primeiro, esta terceira pessoa sequer dispunha de autorização para expor a denúncia. Mesmo assim o fez. Segundo, em outro caso em aberto que estamos apurando, esta mesma pessoa foi responsável pelo sumiço de uma importante prova, atrasando sua resolução. Terceiro, por repetidas vezes a ouvimos falar que nossa organização deveria ser destruída, num tom de claro revanchismo. Quarto, em ataques por redes sociais, ela tem criado e feito repercutir uma campanha de calúnias, injúrias e difamação contra nosso coletivo. Nesta mesma campanha, afirma que sua guerra só começou. Como confiar no que esta e outras pessoas a ela associada dizem?
Assim, a despeito do compromisso em apurar a denúncia, temos razão suficiente para duvidar de sua versão ou, no mínimo, temos certeza que ela está sendo oportunamente manipulada para reforçar os interesses pessoais de destruir nosso coletivo, inclusive fisicamente. Para o desagrado de alguns, será preciso mais do que calúnias e injúrias para nos abater! Sofremos e resistimos a perseguições da Reitoria! Suportamos a repressão policial! Enfrentamos acusações do estado! Contra-atacamos o sensacionalismo da imprensa burguesa! Vivemos diante do tráfico e do crime que abate nosso povo nas periferias! Batemos de frente com o gangsterismo dos pelegos! Combatemos fascistas e integralistas! Sobrevivemos contra a lei de morte da miséria econômica! Não será uma tentativa desesperada e individualista que destruirá nossa obstinada militância e nosso programa coletivista! Caluniadoras/es não passarão!
Mas as tentativas não pararam por aí. Neste caso, a atual namorada do suposto agressor, também pertencente a nossa organização, chegou a ser ameaçada de agressão por outras pessoas que, sem e menor apuração, acataram a denúncia como culpa. Diziam que nossa camarada teria “repassado informações confidenciais para ‘machos’”, acusaram-na de “X9” (dedo-duro) e de “acobertar” machista. Queriam acusar seu namorado de agressor e não admitiam que ela mesma o interrogasse!? Um insano contrassenso!
No fim das contas, a suposta violência contra mulher se transformou na iminência de uma agressão contra uma camarada nossa! Seu nome foi envolvido também na primeira denúncia, onde supostamente teria ido junto ao agressor pressionar a vítima (sic). Uma série de calúnias e fofocas tem sido feitas “pelos cotovelos” e redes sociais. Não possuem a coragem de falar no cara a cara e dispensam as provas para suas afirmações, pois são mentirosas! Poucas são as pessoas que diante desta campanha de calúnias demostraram caráter e foram diretamente aos envolvidos e acusados para indaga-los: respeitamos estas pessoas. Diferentemente será o trato com aquelas que reproduzem calúnias, pois serão igualmente responsabilizados.
Todo nosso coletivo está sendo levianamente acusado de encobertar estes casos e ser machista. Mas afirmamos: não toleraremos quaisquer agressões a nossos militantes, e nos reservamos o direito à legítima defesa! Ademais, permitimos as caluniadoras o direito a autocrítica e a retratação pública, se assim preferirem. Em contrário, ações de reparação serão tomadas sobre suas incorreções. Não pode haver permissividade do movimento para que a luta contra o machismo se reverta em seu contrário através da banalização de denúncias.
A calúnia para depreciar oponentes
Qual nossa responsabilidade em disseminar uma afirmação que não sabemos a procedência ou que não foi por ninguém ou nenhuma entidade apurada? Na hipótese da acusação ser falsa, o que está em jogo é a integridade moral, psicológica e muitas vezes física de alguém ou um grupo. No movimento estudantil, a prática da calúnia tem sido ciclicamente usada com o objetivo de desmoralizar ou destruir fisicamente adversários. Ela é manipulativa, desonesta e excessiva. A calúnia é uma política, tão suja quanto quem a pratica.
A fofoca é uma cadeia interminável de deturpações: “quem conta o conto aumenta um ponto”, diz o ditado, e os caluniadores deitam e rolam. Beneficiam-se do rasteiro debate “no escuro” e unilateral, sem dar chances de resposta. Como política, estes usam de meios “sofisticados”: fazem falas em assembleias, propagandeiam em facebook, divulgam conversas cortadas de redes sociais, usam debates de chapas depreciando seus oponentes, generalizam casos particulares, abordam e pressionam com sentimentalismo conhecidos de suas vitimas. É preciso cuidado: ao reproduzir e dar como verdade tudo o que ouvimos, podemos agir como difusores de uma inverdade e cometer graves injustiças.
Nota-se que ajudamos a reproduzir fofocas, mas quase nunca temos a iniciativa de resolvê-la. A conversa franca com os sujeitos envolvidos é substituída pelas interpretações precipitadas, quase sempre movidas pela pressão pública. Não se alcança um ponto de lucides. Torna-se um verdadeiro tabu perguntar aos envolvidos: “- e aí, fez ou não fez? Como foi? Porque a outra parte está dizendo isso? Como foi então? Quem esteve presente durante o ocorrido pode testemunhar os fatos? Quais as evidências provam o que você fala?” Conversar com um acusado, nestas circunstâncias, é um ato revolucionário.
Em diversas situações, estamos diante de uma reunião que sem se dar ao trabalho de conceder um direito de resposta ao acusado, parte para sua condenação. Assim, ciente de que para tornar alguém culpado basta acusa-lo, personalidades e grupos usa e abusa das calúnias. Sabem que, mesmo que sejam desmentidos depois, a própria repercussão da mentira poderá destruir uma reputação. Ficam a vontade, pois logo esquecerão que são mentirosas. Combater este desvio oportunista depende do nosso firme posicionamento. Mas é preciso entender, para além do mau-caratismo, como se justificam alguns adeptos desta prática.
A interferência absolutista, relativista e colaboracionista
Às vezes, algumas ideologias tentam justificar a ausência do básico direito de defesa. No feminismo, as ideias do scum manifesto, escrito em 1967 por Valerie Solanas, acreditam que todo homem é um deficiente genético – o gene Y seria uma série incompleta de cromossomos do gene X. Pregam a governança mundial somente por mulheres através da eliminação do sexo masculino da face da terra. A reprodução da espécie se daria em laboratórios genéticos no qual os “defeituosos”, como portadores de necessidade especiais e “machos”, não seriam criados.
Interpretando que um homem já está errado só por existir, as pregadoras do scum manifesto inviabilizam que um homem acusado tenha o direito de fala – na verdade, toda fala de um homem é uma espécie de silenciamento das mulheres. O scum manifesto, entretanto, não prega apenas a luta de mulheres versus homens, mas também de “mulheres scum” versus “meninas do papai” – as que não aceitam que o “macho” é inferior. Nenhum argumento fora dos sagrados mandamentos scum seriam aceitos. É um retorno ao absolutismo. Parte disso está presente em algumas pessoas que dirigem as atuais campanhas difamatórias.
Outra ideologia é o pós-modernismo. Neste caso, o direito de defesa (direito de fala) pode se igualar a própria acusação. O pós-modernismo acredita que a linguagem/informação é o centro que determina a humanização do ser humano. É a interpretação do mundo exterior e a expressão desta compreensão pelos indivíduos e grupos que nos fazem sermos o que somos. Logo, a realidade material do mundo é relativa, pois depende da interpretação variável em cada indivíduo/grupo – o chamado pluralismo epistemológico. Assim, diante de uma denúncia, tanto uma possível defesa poderia ser “verdade” como também o seria a própria acusação, valendo aos demais a “verdade” mais cabível a suas filtragens interpretativas.
Embora o pós-modernismo pretenda-se, em teoria, desmistificador de “essencialismos”, a forma como sua ideologia opera, tanto no âmbito acadêmico quanto nos movimentos sociais, reforça um dilema central: a impossibilidade de conciliar alteridades/identidades com unidade política e leia-se de esquerda. Ora, o próprio avanço do capitalismo na história contribuiu para que as relações de produção do mundo do trabalho fossem fragmentadas e especializadas. Mas a consequência na academia, por exemplo, é a não centralidade da categoria “classe”. Não é diferente com a individualização extrema das subjetividades, como se estas não tivessem “condutores” universais.
Outra influente tese é a noção de sororidade. Seu significado direto seria o pacto de solidariedade assumido entre as mulheres. A sororidade, então, possui como unidade de suas relações o fato de alguém ser mulher. Embora correntemente se use o termo para embasar a justa luta pela emancipação feminina, em especial combater a misoginia e o patriarcado, a sororidade excluiu qualquer outro principio ou característica para realização deste pacto. Quer dizer, não importa se se trata de mulher trabalhadora ou uma mulher burguesa que lhe explora; a eleitora ou a parlamentar mulher que lhe tira a voz; a mulher liberal ou a socialista; a autoritária ou a libertária: todas devem estar jutas! Neste sentido, a sororidade, similarmente ao conceito de cidadania, apaga todas as contradições sociais e sob seu pretexto dois principais problemas são criados: o colaboracionismo entre classes sociais antagônicas e a presunção de que mulheres devem pactuar entre si, por vezes escondendo erros internos ao grupo de associação.
Não queremos com isso desconsiderar o lugar social e histórico das identidades! Uma mulher negra, pobre e lésbica sofre triplamente mais opressões que um homem, hétero, rico e branco. Entretanto, nenhuma identidade existe em essência, mas em relação e segundo estratégias de se operar o poder. Na política reformista e eleitoreira, frequentemente utiliza-se as identidades enquanto democracia instrumental. Tanto a sororidade quanto o pós-modernismo são usados para reforçar (ou renovar) o instrumento de opressão política, o Estado, e de exploração econômica, o Capital.
Nos movimentos sociais, há a importância central do protagonismo da base que se articula com uma identidade específica seja ela de gênero, raça, etnia, categoria ocupacional ou classe social. Assim, evita-se cair em um vanguardismo cego. O que não podemos é deixar de fazer a denúncia aos oportunismos de determinados grupos e partidos no interior dos mesmos movimentos. Ora, seremos contrários se, por exemplo, uma mulher defender posições conservadoras e liberais. Não por ser mulher, mas por defender posições liberais. Na democracia instrumental, o empoderamento das alteridades que clamam por emancipação passa a ser apenas aparência muito útil ao capitalismo. Ele se apropria e muito dessas identidades para lançar novos mercados.
Contudo, a única possibilidade de unidade política em meio a identidades tão fragmentadas é a classe. E é partir dela que construímos o feminismo classista na RECC. Entendemos que ao mesmo tempo em que as mulheres trabalhadoras lutam pela sua emancipação, encontram como inimigo a dominação da classe burguesa que lhe explora, sendo sua emancipação específica indissociada de sua libertação enquanto classe. Desse modo, tanto as mulheres necessitam da luta de classes para se emancipar quanto a classe trabalhadora necessita da emancipação das mulheres para se libertar por completo. Dito de outro modo: não há libertação das mulheres sem a libertação da classe, nem libertação da classe sem a libertação das mulheres. A luta pela igualdade da mulher ao homem, no capitalismo, significou a direito a mulher ser igualmente explorada: isto não é emancipação. Por isso nossa concepção de feminismo se associa a outro projeto societário, necessariamente! Nesse sentido, a questão específica da mulher deve ser pensada enquanto elemento da luta de classes, como parte essencial da luta pela emancipação do conjunto das massas populares da exploração e opressão capitalista.
É na rasteira de teorias como o scum manifesto, pós-modernismo e sororidade que se vulgarizou aceitar uma versão dos fatos como verdadeira ou impedir o direito de defesa, por exemplo, quando um homem é acusado de machismo. Por vezes, todas estas ideologias realizam um pacto para justificarem a anti-democracia. Por isso é preciso entendê-las para que não nos manobrem em seus intuitos equivocados. Caso contrário, ofereceremos um prato cheio para caluniadores/as e fofoqueiros/as, uma péssima escola ao movimento estudantil.
Um compromisso com a verdade: apuração materialista e dialética
Alguns dirão que é um processo burocrático a apuração de uma acusação. Outros afirmam categoricamente ser uma tática para evitar denúncias. Sabemos que em muitos casos, sobretudo vinculados à violência de gênero, há uma forte pressão social sobre a vítima por seu silêncio. Mas se temos um compromisso com a verdade – e estas devem vir à tona! –, temos que nos comprometer com um método justo e democrático de apuração. Quando a avidez pela denúncia se expressa junto ao desprezo pela apuração, corre-se o risco não só de despolitizar as relações e generalizar casos, mas de executar condenações injustas – vide os casos nos telejornais de linchamento até a morte.
Como tratar formalmente algo tipicamente informal ou ocorrido em âmbito privado? Independente da teoria que se sustente, negar a um acusado que este tenha seu direito de defesa num julgamento idôneo é, na prática, agir pior que a imprensa sensacionalista, do que a justiça burguesa ou a polícia civil que – ao menos em teoria! – garantem direito ao contraditório e apuração de evidências.
Distintamente o que faz, em geral, o movimento estudantil e como o querem algumas personalidades e grupos ditos “radicais” (na verdade, são “superficiais”), uma acusação não é suficiente para que haja condenação. Quem realizou esta prática foi o absolutismo em sua inquisição e hoje o faz o sistema carcerário burguês, que deixa presos milhares de pessoas sem mesmo conceder o direito de julgamento.
Para que haja qualquer condenação, uma séria investigação com princípios e procedimentos é necessária. Não podemos concordar com nenhum tipo de penalização se este pressuposto não for atendido. Deve haver, no mínimo: 1) apuração entre as partes envolvidas e o confronto de suas versões, 2) averiguação entre (possíveis) testemunhas, 3) busca de evidências que comprovem/desmintam o que está sendo dito, 4) um espaço democrático que permita interpretar as evidências e julgar o caso.
Trazer provas a uma apuração ou requerer testemunhas nem sempre é fácil ou possível. Uma característica do machismo na sociedade é que por vezes ele é praticado em ambientes privados e não públicos. Embora uma agressão física possa dispor de laudos técnicos para prova-la, mesmo no espaço privado, a violência psicológica não é de fácil detecção e por isso ignorada. É por isso que uma apuração não pode ser objetivista, quer dizer, desconsiderar elementos subjetivos dos envolvidos, como seu padrão comportamental, a vida que lhe constrói uma identidade, seus sentidos individuais; mas também não pode ser subjetivista, ou seja, ignorar a objetividade dos fatos atentando-se apenas as interpretações e qualidades sensoriais e interpretativas dos sujeitos. Uma apuração materialista e dialética deve pressupor haver elementos objetivos e subjetivos nas relações sociais e o choque dos contrários.
Alguns dizem que não se pode confiar nas meninas. Ora, não se trata de criticar espaços exclusivos de mulheres em si. Por vezes dizem que estes são desprovidos de controle emocional e outros ataques misóginos. Antes, trata-se de saber: quais seus critérios? Possíveis espaços exclusivos de homens estão sujeitos, de igual ou pior modo, ao equívoco de uma apuração, por exemplo. Errar não é gerado pela condição biológica do sexo! As mulheres sofrem opressão de uma forma singular e um espaço exclusivo permite mais conforto e autoconfiança para expressar e combater as opressões, entre outras razões. Achamos, entretanto, que o combate ao machismo passa necessariamente pelos espaços mistos, homens e mulheres tomando conhecimento e combatendo juntos a opressão, com as mulheres na linha de frente. Antes de um problema biológico, emocional ou o que for, trata-se aqui do famoso problema da tirania nas organizações sem estrutura!
Defendemos um tribunal popular, e não o julgamento e condenação por grupos seletos orientados por escusas finalidades. Por vezes, o apelo de absolutistas, relativistas e colaboracionistas é tão forte, que uma pequena minoria afasta, silencia ou humilha outras meninas, mesmo em espaços exclusivos de mulheres. Se não tomadas aquelas medidas de um procedimento justo, nos subordinaremos a condenação sem provas e a punição sem nem mesmo conceder o direito de defesa aos acusados. Assim, estará se cultivando a oportunidade para a disseminação das calúnias e injustiças, nestes ou outros casos. Será legitimado um ambiente antidemocrático, hostil e passível de muitos erros. É preciso ter coragem e organização para criticá-lo.
O amparo às vítimas e as contradições no seio do povo
Ao vislumbrar o socialismo, se pretendemos também uma revolução cultural, defendemos uma visão de justiça restaurativa. Uma posição política na qual se considera o atendimento das necessidades da vítima, ao mesmo tempo em que o agressor é convocado a participar do processo de reparação do dano, visando um processo emancipador e de reintegração à sociedade. Não qualquer reintegração, mas, deve ser pedagógica segundo os princípios feministas e classistas que defendemos. A mera punição nem sempre regenera a moral nem corrige a prática! Assim, corrigir práticas no sentido de evita-las é uma política preventiva para que não sejam feitas novas vítimas. O objetivo não é execrar eternamente um sujeito de seu convívio social, mas sim a reeducação do sujeito e da sociedade para que práticas de violações não mais ocorram.
É fato que nos preocupamos em como lidar, por exemplo, com agressores machistas. Quais penalidades merecem? Mas muitas vezes, no afã da situação, esquecemos que sobre um agressor repousa uma vítima. É neste sentido que devemos o esforço conjunto de eliminar ações opressoras, e igualmente ou com mais atenção oferecer solidariedade e amparo a vítima. Muitos esforços podem ser feitos nesse sentido, a depender da questão. O auxílio material e financeiro, por exemplo, ao oferecer abrigo e oportunidade de renda a mulheres vítimas e dependentes financeiramente do homem; acompanhamentos psicológicos para superação de traumas e retomar autoestima; orientação política para compreensão das raízes da opressão sofrida e qualificar seu combate; treinamento de autodefesa para resistir a ataques a sua integridade.
De toda forma, um erro já penalizado, onde seu executor tenha sofrido a devida opinião pública, tenha realizado uma sincera autocrítica, avaliada de acordo com a correção de sua conduta prática, este erro não pode condenar e estigmatizar um sujeito por toda sua vida. Diferentemente de sujeitos que nem realizam autocrítica mesmo diante da moralidade pública, que realizam suas ações conscientes do que fazem ou que possuem cíclica reincidência do erro. Nestes casos, a sociedade deveria tratar como verdadeira patologia. Mas a excreção ou eliminação do sujeito nem sempre significa a eliminação de sua prática.
Há uma distinção da luta anti-machista para a luta anti-capitalista. A luta contra o machismo não tem por objetivo eliminar fisicamente o sexo oposto, uma vez que o machismo não é uma “doença biológica”; ao passo em que a luta anti-capitalista desenvolve-se para a eliminação de ambas as classes sociais – burguesia e proletariado –, pois sua construção é social e histórica, e não natural ou biológica. Nem sequer para superar o capitalismo trata-se de eliminar fisicamente os indivíduos da burguesia, inimiga irreconciliável da classe trabalhadora; trata-se, isso sim, de eliminar suas posições e privilégios de classe, e se fosse possível a retificação de todos explorador sem sua resistência – a história nos prova – nenhuma revolução social teria sido sangrenta. Assim dizemos: abominamos a tentativa de guerra de sexos! Ao contrário, afirmamos: nunca se esqueçam da luta de classes!
finalmente uma posição lucida sobre essa tentativa absurda de grupos do movimento feminista em impor uma guerra entre sexos.
Porém, tenham em mente que mesmo esse texto será (e já está sendo) objeto de deturpações de um nucleo irracional desta ideologia que não aceita críticas à sua retórica nem à sua estratégia (afinal, o que é o feminismo se não um movimento social? O que faz dele imune a criticas?) sem partir para a acusação irracional de “machismo” “misoginia”, etc. Nenhum delxs está preocupado com a verdade, apenas com a rotulação violenta e infrutifera.