5 anos depois, ainda nos faltam 43

Neste dia 26 de setembro, completam-se cinco anos do desaparecimento forçado dos 43 estudantes da Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos, do povoado de Ayotzinapa, no estado mexicano de Guerrero. Trata-se de uma região de população indígena em que 70% dos moradores vive miseravelmente e que possui as taxas de homicídio mais altas do México.

Naquela semana, o movimento estudantil se organizava para participar de uma manifestação na Cidade do México em memória ao Massacre de Tlateloco, que deixou centenas de mortos quando o presidente Díaz Ordaz ordenou ao exército que reprimisse duramente uma manifestação estudantil em 2 de outubro de 1968. Os normalistas de Ayotzinapa, em sua maioria camponeses pobres em uma escola estadual altamente precarizada, sabiam bem a importância de denunciar os crimes do Estado e honrar a memória dos mártires do movimento estudantil combativo.

Em 26 de setembro de 2014, dois ônibus deixaram a Escola Normal rumo à cidade de Iguala. O plano era realizar os tradicionais boteos, ações de arrecadação de doações entre motoristas no trânsito para custear sua ida à Cidade do México. Durante suas movimentações, os ônibus foram abordados por policiais fortemente armados em uma emboscada. A polícia municipal de Iguala disparou contra os estudantes. Os tiros de metralhadora mataram três imediatamente e deixaram um jovem em coma. A seguir, se inicia uma intensa caçada pelas ruas da cidade à captura dos sobreviventes, em que cerca de 25 pessoas saíram feridas. Nesta perseguição, 43 dos estudantes desapareceram.  No total, o conflito de Iguala vitimou 47 normalistas.

A investigação oficial apontou, em 2015, que os estudantes teriam sido sequestrados e entregues pelas tropas da polícia municipal, federal e do exército para pistoleiros do cartel de narcotraficantes Guerreros Unidos, afirmando que os jovens seriam membros de um cartel rival. O cartel de Iguala teria executado os estudantes, incinerado seus corpos e eliminado os restos mortais em um rio. Segundo a Procuradoria Geral da República (PGR), os normalistas teriam sido detidos a mando do prefeito de Iguala, José Luis Abarca, para evitar protestos durante um evento protagonizado por sua esposa. Tanto Abarca quanto sua esposa são acusados de serem integrantes do cartel Guerreros Unidos.

Diante das inconsistências da versão oficial da PGR, investigações independentes foram realizadas, incluindo equipes internacionais de busca. Os únicos restos mortais encontrados foram os de Alexander Mora Venancio e Jhosivani Guerrero de La Cruz.

A versão do conflito entre carteis era insustentável, o envolvimento de autoridades e forças militares locais e federais era inegável. Para os estudantes e seus familiares, o desaparecimento era um crime de motivações políticas. A Escola Normal de Ayotzinapa surge na década de 1920, por obra da Revolução Mexicana. Durante a década de 60, muitos alunos e ex-alunos se uniram às guerrilhas, criando a fama de berço de guerrilheiros. Essa respeitável tradição de luta e a intensa rotina de protestos de estudantes e professores contra a precarização das escolas normais e o descaso dos governos locais com o povo geravam constantes tensionamentos com forças policias.

Tantas tragédias produzidas pela guerra do narcotráfico supostamente teriam feito o desaparecimento do ônibus de Ayotzinapa passar despercebido, mas as diversas informações levantadas deixavam claro que o crime não era de autoria unicamente de uma facção criminosa. Ficou claro que a polícia municipal que deteve os normalistas, controlada pelo casal Abarca, era mais um braço armado do cartel que surgiu em Guerrero no início dos anos 2000 como uma sucursal do cartel de Sinaloa, de Chapo Guzmán. Essa milícia agiu com o apoio do próprio Exército e da Polícia Federal, afastadas das investigações pelo então presidente Peña Nieto. O desaparecimento dos 43 deixou claro que Estado, polícias e carteis eram uma só organização criminosa.

Em 2018, o escritório de direitos humanos da ONU apresentou a acusação de que dezenas de pessoas envolvidas na apuração do caso haviam sido torturadas por autoridades mexicanas. Em setembro de 2019, 24 policiais suspeitos de envolvimento no crime foram libertados sob a justificativa de que haviam dado seus depoimentos sob tortura. Trata-se da mais recente manobra judiciária para obstruir a verdade sobre o caso. Em cinco anos de atrasos e bloqueios da investigação, são 77 suspeitos em liberdade. E 43 famílias em desespero.

O caso de Ayotzinapa é exemplar da conjuntura política que vitima o povo mexicano em que governantes e carteis estão profundamente relacionados em esquemas gigantescos de corrupção, beneficiamentos e financiamentos ilícitos de campanha desde o nível regional até o governo federal sustentados pela economia do narcotráfico. Militares e carteis, em nome de seus negócios, produzem a barbárie em que torturas, violações, assassinatos em massa e absurdidades legais se tornam rotineiros.

Os familiares das vítimas acreditam na possibilidade de que seus filhos tenham sido vítimas de outro crime comum na região, o sequestro destinado ao trabalho escravo para agricultores e extrativistas ligados também aos carteis e governos.

As montanhas de Guerrero são a região mais pobre do estado mais violento do México. Ali, os camponeses pobres são violentamente forçados a dedicar suas terras ao cultivo de papoula e maconha a mando dos maiores vendedores de drogas da América, cuja produção é dedicada a abastecer o mercado estadunidense. Para atender as demandas do consumo de drogas dos EUA, nos últimos dez anos o México contabilizou cerca de 100.000 mortos e 25.000 desaparecidos. Certamente, essa estatística não inclui as centenas de camponeses das montanhas ameaçados, extorquidos, torturados e executados brutalmente pelos braços armados (regulares e irregulares) do narcopoder. 

Esses grupos poderosíssimos se aliam ao empresariado do ramo extrativista para impor um regime de terror e exploração aos camponeses. Os carteis são apenas a parte do esquema que está sob os holofotes para servir de alvo dos discursos de governantes que se elegem prometendo a guerra ao narcotráfico. Esses discursos são fundamentais para a estratégia de ocultar a real relação do sistema político com a barbárie.

O México e o Brasil têm muito em comum. Os pobres de ambos os países tem sofrido nas últimas décadas com o aumento do autoritarismo e da violência contra povos do campo, com o objetivo de tomar suas terras para a exploração de recursos naturais e energéticos e para a produção de monoculturas para o mercado externo, seja de biocombustíveis ou drogas. A expansão da fronteira agrícola e mineral é baseada na grilagem de terras, desmatamento ilegal e massacres de populações indígenas, negras, camponesas e periféricas. Esse modelo de desenvolvimento econômico neoextrativista vem sendo implementado há décadas em grande parte da América Latina, conduzido pelos governos populistas tanto de esquerda quanto de direita. Esses governos trabalham para eliminar os obstáculos para o agro-narco-negócio oferecendo suas polícias e exércitos para colaborar com a destruição da organização social de comunidades indígenas, quilombolas e camponesas.

A ligação das autoridades mexicanas com os carteis é muito parecida com a cada vez mais conhecida ligação de políticos brasileiros com facções e, principalmente, milícias. Os discursos de desprezo aos direitos humanos e de guerra às facções das periferias urbanas e aos indígenas e quilombolas no campo tem produzido números trágicos no Brasil. Segundo o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 57.341 mortes violentas em 2018, sendo 6.220 causadas pela polícia. Entre essas, a execução da vereadora Marielle Franco, um crime de motivações políticas envolvendo parlamentares e milicianos, segue também sem solução.

Torturas, desaparecimentos e execuções de grupos tradicionais e de militantes são uma realidade inconveniente das democracias latino-americanas. Agora, a ascensão das forças populistas mais conservadoras tem escancarado a importância da censura, da perseguição política e dos massacres para a ordem social que conhecemos.

Debater casos como o desaparecimento dos 43 de Ayotzinapa lança luz sobre os contextos políticos e econômicos que transformam os povos oprimidos em inimigos dos ricos e poderosos e reafirma a necessidade de estarmos organizados em plataformas internacionais alinhadas ao sindicalismo revolucionário, para conquistar por nossas mãos a paz, as terras e a liberdade que precisamos.

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