O Povo Guarani e Kaiowá da aldeia Pirakua realizou a autodemarcação de seu território tradicional de forma autônoma, através da luta histórica por terra e liberdade, desde um lugar de onde, em realidade, nunca saíram: os morros e florestas por onde atravessa o rio Apa. Em 1979, começou a luta pela terra. Dentre 1984 e 1986, houveram tentativas de despejo por pressão de proprietários de terra dos arredores, onde se enxerga o gado no lugar da mata. Em 1986, a terra foi finalmente demarcada, com 2389 hectares, a primeira de todas as demarcações do povo Guarani e Kaiowá. Diz-se que o reconhecimento do Estado foi apenas uma questão formal: mas o que de fato ocorreu, foi a resistência do povo indígena para permanecer no tekoha, que compõe o estudo antropológico denominado Apa Peguá. Daí em diante, muitas retomadas nasceram, o que justifica os dizeres de membros da comunidade, quando afirmam ser Pirakua a mãe de todas as retomadas, servindo de inspiração para a história de luta de outras regiões. Foi no período seguinte a este processo que outros avanços de recuperação de terras tradicionais teve início no Mato Grosso do Sul, conjuntamente ao fortalecimento da Aty Guasu, surgida em 1978, enquanto Grande Assembleia Guarani e Kaiowá.
A FOB, junto do Comitê de Solidariedade aos Povos Indígenas, esteve presente em Pirakua para ouvir e aprender com a comunidade sobre sua história de luta e suas atuais necessidades. Caminhamos pelas matas e rios ouvindo atentamente as palavras dos e das companheiros/as, reforçando a certeza de que é justa a rebeldia e somente a luta emancipa.
Por meio deste comunicado, procuramos demonstrar que existe, por um lado, forte e amplo processo de protagonismo político de fortalecimento das bases comunitárias para a autonomia e, por outro, uma violência de Estado materializada na dependência causada por políticas públicas e em sua histórica aliança com o capital, ao mesmo tempo em que urge a necessidade de tomar as rédeas da própria vida em relação a aspectos básicos da organização das demandas populares: educação, saúde, segurança, aposentadoria, alimentação, território e bem-viver. Isso pode ser observado nos seguintes elementos relatados por companheiro/as da comunidade:
1) Assistencialismo: políticas públicas como Bolsa Família* e oferecimento de cestas básicas implicam em um efeito desarticulador da conquista da autonomia, nuclearizando e individualizando a renda, com reflexos na produção de alimentos. Entendemos que políticas públicas como Bolsa Família e o fornecimento de cestas básicas atendem necessidades mais urgentes, porém: 1) são baratas e não fazem cócegas no Produto Interno Bruto (PIB) de um Estado-nação ou de organizações multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e talvez justamente por isso sejam tão aceitas e celebradas dentro da democracia liberal burguesa; 2) medidas reformistas são anestesiantes da revolta popular e revolucionária, pois são introduzidas na subjetividade dos oprimidos ora de forma a atenuar seu desespero, ora de forma a tornar dóceis os potenciais corpos insurgentes;
2) Escola: por um lado, professores/as indígenas são importantes articuladores da comunidade, reforçando o diálogo com os saberes ancestrais, ao mesmo tempo em que formam os jovens para a luta. Por outro, a aldeia Pirakua conta apenas com uma escola de ensino básico, enquanto a construção da escola de ensino médio permanece inacabada por negligência dos poderes municipais da região, a exemplo do prefeito de Bela Vista Reinaldo Miranda (PSDB), que tenta enganar ao povo com suas promessas vazias de campanha. O prefeito chegou a contratar advogados para impedir a arrumação da estrada, em resposta à ação no Ministério Público para garantir que as 20 crianças sem acesso à escola pudessem frequenta-la. Crianças a partir de 6 anos e jovens, são obrigados a acordar às 3 da manhã e caminhar de 12 a 20km por dia para estudar, por estradas íngremes e sinuosas, muitas vezes comprometidas pelas chuvas, com difíceis condições de acesso. Os jovens precisam ainda sair da comunidade para o ensino médio, multiplicando os trajetos. Não existem veículos suficientes disponíveis pela prefeitura. É importante ressaltar que há uma nítida preocupação por parte dos professores em fortalecer uma educação indígena voltada para sua cosmologia e história, o que pode ser comprometido com a saída forçada de jovens para estudar na cidade.
3) Soberania Alimentar e proletarização marginal: os/as companheiros/as nos contam que, em especial, a partir dos anos 2000, houveram retrocessos na produção de alimentos, fruto da individualização das roças por núcleo familiar. Ao mesmo tempo, por força das necessidades impostas pela realidade material, pela assistência e avanço da fronteira agrícola, muitos jovens se vêem impelidos a trabalhar nas fazendas, plantando soja, milho e cana, manejando máquinas agrícolas e também são levados à colheita de maçãs na região sul do país, onde são superexplorados por meses antes do retorno à comunidade. No entanto, ainda que tudo isso gere profundas contradições, por meio da auto-organização popular, em especial a partir de 2017 houve um fortalecimento importante das roças coletivas (kokue) plantadas de forma autônoma e sem apoio externo junto das trocas inter-comunitárias, com ampliação das plantações de mandioca-seda, mandioca amarelinha e mandioca brava, além de algumas variedades de milho e arroz, que se misturam às roças de batata-doce, maxixe, feijão, abóbora, frutíferas e diversas outras culturas.
Frente a todas essas demandas, reconhecemos a necessidade de permanecer lado a lado das lutas dos povos indígenas, por território, justiça e liberdade. Que os companheiros e companheiras de Pirakua arranquem mais vitórias do Estado, avançando em sua luta pela recuperação dos tekoha. Conclusivamente, saudamos a histórica resistência do Tekoha de Pirakua para a defesa resoluta de sua autonomia frente ao Estado e aos patrões, e a prática de defesa da vida que se realiza pelos guardiões das matas, rios e da terra. Sem território não há autonomia.
TERRA E LIBERDADE!
VIVA A LUTA DOS GUARANI E KAIOWA DA ALDEIA PIRAKUA!
AVANÇAR AS RETOMADAS, DESTRUIR O LATIFÚNDIO!
0 thoughts on “ALDEIA PIRAKUA: AUTONOMIA E LUTA NA MÃE DAS RETOMADAS GUARANI E KAIOWÁ”