“POR TRÁS DO ARRENDAMENTO VEM O DESPEJO, VEM O GRANDE LATIFUNDIÁRIO”: O AGRONEGÓCIO CONTRA YVY KATU POTRERITO

“POR TRÁS DO ARRENDAMENTO VEM O DESPEJO, VEM O GRANDE LATIFUNDIÁRIO”: O AGRONEGÓCIO CONTRA YVY KATU POTRERITO


[1] Frase de Leila Rocha Guarani.

Denúncia internacional elaborada pela Kuñangue Aty Guasu, grande assembleia das mulheres do povo Guarani e Kaiowá

O Mato Grosso do Sul é conhecido como a “faixa de gaza” do Brasil[1], uma região do centro-oeste marcada por conflitos de terras entre fazendeiros e os povos originários que lutam em defesa de seu território ancestral e das poucas florestas e rios remanescentes diante do avanço do agronegócio e das monoculturas predominantemente constituídas por soja, milho, cana-de-açúcar e eucalipto, além de pastos para criação extensiva de gado. É no cone sul deste estado onde resiste o povo Guarani e Kaiowá[2], que conforma o segundo maior povo indígena do Brasil. O processo de violenta desapropriação e usurpação territorial que este povo enfrentou historicamente remonta ao século XIX, quando se instalou a Companhia Matte Larangeiras na ampla região do cone sul que corresponde aos territórios tradicionalmente ocupados pelos Guarani e Kaiowá. Na época, até 5 milhões hectares foram arrendados para a Companhia, a maior concessão de terras públicas para iniciativa privada da história do Brasil, no período imediatamente posterior à Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai. Sequencialmente ao monopólio e monocultura da erva-mate, ocorre a introdução do gado durante a marcha para o oeste, ao longo da ditadura de Getúlio Vargas na década de 40; a soja e o milho transgênicos na década de 70, durante a ditadura empresarial-militar brasileira; e a cana-de-açúcar, intensificada a partir dos anos 1980. O centro-oeste brasileiro despontou como um dos núcleos duros do agronegócio no país, como resultante da desenfreada predação da expansão da fronteira agropastoril.

Contemporaneamente, os povos indígenas no Brasil se encontram sob a mira de um governo publicamente anti-indígena, apoiado pelo grande capital em benefício da financeirização da terra e dos bens comuns. No período imediatamente posterior à articulação de Jair Bolsonaro para reunir falsos representantes dos povos indígenas em Brasília junto à empresários do agronegócio e do neoextrativismo no dia 19 de abril – evento confrontado corajosamente através de manifestações convocadas pela APIB[1] -, ocorre um recrudescimento dos conflitos e violações em Terras Indígenas (TIs) ao redor do Brasil, incluindo os ataques de garimpeiros armados contra as TIs Munduruku e a destruição da sede da associação de mulheres Munduruku Wakoborun (PA); o ataque brutal de garimpeiros armados, vinculados à narcotraficantes, contra a TI Yanomami no dia 10 de maio; e, finalmente, no Mato Grosso do Sul, observa-se o aprofundamento do conflito entre os representantes do agronegócio e os povos indígenas em função das tensões causadas pelo avanço da fronteira da soja, como no caso da retomada Guarani e Kaiowá de Yvy Katu[2], TI localizada no município de Japorã[3].

O tekoha[1] Yvy Katu, majoritariamente composto pelos Guarani Ñandeva (ou ainda, Ava Guarani ou apenas Guarani) foi retomado em 2003, em histórica resistência que culminou na recuperação deste território para pressionar por sua demarcação efetiva. A Terra Indígena Yvy Katu é declarada e consiste em um território de 9.454 hectares que abrange a Reserva Indígena de Porto Lindo, de 1648 hectares, instituída pelo Serviço de Proteção ao Índio em 1928.

Area destacada: Tekoha Yvy Katu, proximo a fronteira com o Paraguai

Área da Terra Indígena Yvy Katu sublinhada, com os nomes das retomadas de terra que a compõe. Em seu interior, pontilhada, a Reserva de Porto Lindo.

Ao longo da semana do dia 3 de maio, Yvy Katu Potrerito, um dos tekoha que abrange o tekoha guasu[1] Yvy Katu foi atacada à tiros e através da proliferação de incêndios intencionais, seguindo a lógica dos incêndios que, ao longo de 2019 e 2021, atingiram largas extensões de biomas tão diversos quanto Amazônia, Cerrado e Pantanal. A mesma lógica se estende aos territórios ainda controlados pelos Guarani e Kaiowá na região de transição entre mata atlântica e cerrado que corresponde a Yvy Katu, onde o Estado brasileiro lança uma ofensiva final com o intuito de integrar tais territórios ao mercado global. Sob tiros e as fumaças dos incêndios – promovidas por fazendeiros e políticos locais com amplo apoio jurídico -, Leila Rocha, da etnia Guarani-Ñandeva, histórica liderança da retomada Yvy Katu, relata os recentes ataques sofridos, aos quais a Kuñangue Aty Guasu faz eco:

“Vivemos um momento muito sombrio. As grandes empresas estão por trás disso, assim como os bancos e a bancada ruralista. Os latifundiários – grandes proprietários de terras – planejam transformar os locais onde tinham árvores e rios em plantio, sem pensar num manejo sustentável. A comunidade Guarani e Kaiowá segue sem água em meio a pandemia, em meio a muitas doenças. Então é um alerta geral, diante de todos os ataques, despejos, queimadas que avançam nos territórios para dar espaço para invasão de nossos territórios pelos latifundiários. As lideranças, a nossa voz, nossa organização, lideranças na linha de frente também estão sendo perseguidas e criminalizadas. É um momento muito difícil inclusive para nossa saúde mental que não está mais suportando tudo isso. Da mesma forma como vem atacando os Yanomami, aqui [no Mato Grosso do Sul] os fazendeiros chegam invadindo os nossos territórios, os arrendatários ameaçam as lideranças indígenas, a Funai chega com as reintegrações de posse e despejo de toda a comunidade. O despejo já chegou em região de fronteira, já chegou em Kurusu Ambá, em Yvy Katu, chegou ali nas comunidades no entorno de Yvy Katu e hoje não temos quem recorrer, quem recorria antes para barrar reintegração de posse era a Funai, mas eu acredito que a gente ainda tem aliados que podem nos ajudar. Então é um momento muito difícil, mas trago esse alerta, essas informações doloridas e angustiantes. Muita invasão dos Territórios Kaiowa e Guarani com o avanço do arrendamento, lideranças que lutam pelo território em ameaça de morte, bancos, grandes empresas e bancada ruralista por trás dos arrendamentos sem pensar no manejo sustentável. As queimadas estão acontecendo com força! As últimas nascentes estão morrendo! As árvores agonizando em meio a queimada! E as máquinas agrícolas chegando com peso nos territórios Kaiowá e Guarani, às reintegrações de posse, os despejos/desterritorialização das comunidades chegando e a ‘nova Funai’ usando o termo “invasão” se referindo as retomadas Kaiowa e Guarani! Tempos sombrios! Socorro!”

            Leila denuncia a existência de nova reintegração de posse, que está caminhando lado a lado com o arrendamento da terra para o plantio de soja. “Estão queimando tudo! De árvores até o lugar onde a gente pega sapé pra fazer casa. Andam com armas nas costas pra amedrontar a comunidade”, afirma, indicando inclusive a presença de carros e tratores da prefeitura de Japorã, que entram sem aviso prévio e assediam as proximidades de sua casa junto à advogados que pressionam pela falsária “parceria agrícola”. Os fazendeiros e seus grupos de influência alegam que os indígenas não produzem naquela terra, afirmação racista que reproduz e reforça a ideia de “primitivização” da cultura indígena, em total desrespeito e desconhecimento do trabalho de recuperação florestal, ancestral e de resistência que realizam diante da destruição ambiental provocada pelo agronegócio na região. 

Árvore em chamas na retomada de Yvy Katu Potrerito, incendiada por arrendatários para dar lugar a plantações de soja

Outras importantes denúncias realizadas por Leila Rocha dizem respeito a 1) compra de pessoas da aldeia para promover as práticas ilegais de arrendamento, na realidade mobilizadas por agentes externos – políticos, empresários e fazendeiros; 2) a nascente localizada no interior do Tekoha Guasu está secando; 3) Leila afirma que “se me encontrarem morta, vocês já sabem quem está por trás disso”, se referindo aos promotores dos arrendamentos. Leila está ameaçada de morte e corre sério risco de vida por defender o seu tekoha, por não deixar para trás a memória dos que tombaram em defesa da terra. Exigimos ação imediata dos órgãos competentes e movimentos – MPF, organizações de Direitos Humanos, movimentos sociais, Comissão Interamericana de Direitos Humanos e organismos internacionais – para proteção da vida e da saúde de Leila Rocha, que conclama ao povos do mundo:

“O governo tem o dever de nos reconhecer, pois somos os primeiros habitantes desse país e estamos em todos os lugares. Nós somos a raiz dessa terra e os demais são os nossos galhos e folhas. Pense comigo: em uma árvore, quantos pássaros já pousaram? Nós somos como a árvore e muitos pássaros pousaram em nossos galhos, fizeram seus ninhos e depois junto com seus filhotes se espalharam e voltaram depois para assassinar a própria raiz. É preciso mais união das mulheres para trabalhar juntas, pois cotidianamente ouvimos que tantas mulheres se encontram em emergência e nós temos que chegar até elas e passar a mensagem para não desistir. Porque nós somos as árvores nativas, só não somos reconhecidas. E muitos que pousaram em nossos galhos não se cansam de querer derrubar a árvore nativa há décadas. Nós somos como a árvore, e que todas as mulheres fiquem firmes e sempre lutando porque nós somos a árvore nativa e a nossa raiz não pode acabar e apodrecer. Mulheres, lutem sempre no que vocês acreditam, assim como eu estou lutando. Eu sei que ser mulher liderança é um desafio, eu sei que muitos não irão me ouvir, que muitos se levantaram contra mim. Eu sei que não me reconhecem como mulher lutadora. Mas sou grata às nhandesy e aos nhanderu, que caminham comigo. Sou guerreira Guarani Ñandeva e ninguém vai me cooptar, e enquanto eu estiver viva vou seguir lutando pela minha terra. Eu conheço a minha história e desejo que todas as mulheres indígenas continuem batalhando, não desistam. Vamos lutar independentemente de onde estivermos, por nossos direitos e pelo nosso território que pertence a nós!”

A intensificação de mais uma ofensiva do agro se realiza, portanto, através da presença de arrendatários e seus advogados, aliados à agenda do governo de ultradireita de Jair Bolsonaro, com o intuito de pressionar a população local a sair do seu território, por meio de falsas alegações de “parcerias agrícolas” (outro nome para arrendamento) que definem o objetivo proclamado pela “Nova FUNAI”: abrir as Tis para exploração agrícola. A lógica do etnodesenvolvimento – outro nome para reformulação do velho integracionismo e tutela característicos do genocídio institucionalmente/empresarialmente agenciado no Brasil contra os povos – adquire novos contornos, sob a iminência de aprovação do Projeto de Lei 191/20, que busca aprovar mineração e agronegócio em Terras Indígenas. A FUNAI – atualmente militarizada, comandada pelo ex-Policial Federal Marcelo Xavier – responde aos desmandos da bancada ruralista e promove o arrendamento em Tis através de uma obscura capitulação de falsas lideranças e do aproveitamento das vulnerabilidades de um povo exposto à fome e à pandemia. Importante notar que a prática de arrendamentos em Terras Indígenas é ilegal, e fere os artigos 231 e 232 da Constituição Federal, clausulas pétreas, que definem a inalienabilidade das Terras Indígenas que são de usufruto exclusivo dos povos, não sendo permitido o beneficiamento de terceiros.

Neste ínterim, o governo encaminha ainda a saída do país da Convenção 169 através do Decreto Legislativo 177, que autoriza ao Presidente da República a denunciar a Convenção; e a aprovação da nova lei de licenciamento ambiental, que na prática destrói toda possibilidade de regulação de danos ao meio ambiente promovidos por grandes empreendimentos, o que inclui atividades agropecuárias. Estes fatos se materializam no Mato Grosso do Sul através de dois megaprojetos, nomeadamente:

  1. O Corredor Bioceânico, parte da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sulamericana (IIRSA), que busca escoar a produção de commodities para o mercado asiático através da conexão rodoviária entre 4 países – Brasil, Paraguai, Argentina e Chile – o que irá impactar diretamente território Kadiwéu e indiretamente todos os territórios Kaiowá e Guarani que irão sentir a pressão pela ampliação dos arrendamentos e monoculturas de soja com intuito de garantir mais recursos para exportação;

2) Projeto da Nova Ferroeste, ferrovia que busca unir Maracaju e Dourados ao Porto de Paranaguá, para escoar a produção de grãos de monoculturas – as mesmas que resultam na morte dos povos indígenas e propulsionam a nova guerra contra os tekoha – que será considerado o segundo maior corredor de transporte de grãos do país. Será construída com investimentos diretos da Russian Railways (RZD) e apoio direto da COAMO, cooperativa líder na exportação de soja, que abrigou os fazendeiros que organizaram o Massacre de Caarapó nas dependências da empresa momentos antes do Massacre acontecer no dia 14 de junho de 2016. A ferrovia possibilitará o transporte de 35 milhões de toneladas de soja por ano, e irá cortar o grande território Kaiowá e Guarani historicamente usurpado pela colonização e pelo avanço da agroindústria. No mapa é evidente que áreas de intenso conflito fundiário entre grandes fazendeiros e indígenas – Maracaju, Dourados, Caarapó, Amambai e Iguatemi/Japorã (onde está localizado Yvy Katu) serão atravessados pela rodovia. Haverá apoio de gigantes do agronegócio como Cargill e Bunge.

Os Guarani e Kaiowá, conclusivamente, apresentam esta denúncia através da Kuñangue Aty Guasu, legítima assembleia das mulheres Guarani e Kaiowá, instância máxima de deliberação das mulheres do povo, para gerar movimento e apoio internacional neste momento de extrema violência que um novo período de invasão dos territórios ancestrais ocasiona, seja pelos arrendatários, grandes empresas, mineradoras, garimpeiros, ou pela militarização de nossas vidas e nossas terras. A ameaça de morte não se limita da Leila Rocha, e mais denúncias como essa se multiplicarão. O cenário sombrio ainda inclui o avanço de igrejas pentecostais, que torturam rezadoras às acusando de bruxas, relembrando momentos da história muito conhecidos pelos povos indígenas, como o obscuro tempo de “caça às bruxas” que preparou a colonização de Abya Yala. Não por um acaso, a síntese macabra entre Igreja, Estado, Empresas – “Deus, rei e a lei”, que um dia afirmaram os invasores europeus serem razão para a desumanização dos povos que aqui habitam – se reconfigura para “deixar a boiada passar”, reacendendo a agudização de graves conflitos que há muito tempo banha de sangue as terras vermelhas do Mato Grosso do Sul. Este é um pedido de socorro e um grito de revolta. Precisamos impedir que o céu caia sobre nossas cabeças e defender a vida dos povos indígenas, que ainda guardam a terra e a biodiversidade a despeito do fantasma da fome, da morte e do genocídio. Sem terra e liberdade, todos pereceremos.

CAMPANHAS DE ARRECADAÇÃO EM CURSO PARA APOIAR O POVO GUARANI E KAIOWÁ:

*APOIE A KUÑANGUE ATY GUASU: https://www.kunangue.com/

E-mail da Kuñangue: atykunakuera@gmail.com

*APOIE A CAMPANHA DE ARRECADAÇÃO DE SEMENTES CRIOULAS PARA A COMUNIDADE VÍTIMA DO MASSACRE DE CAARAPÓ EM 14 DE JUNHO 2016. EM BREVE, A FOB EMITIRÁ NOTA ACERCA DO ADIAMENTO DA CAMPANHA POR CONTA DA TERCEIRA ONDA DA PANDEMIA:

[1] Grande território ancestral Guarani e Kaiowá. Em sua abrangência, se localizam diversos tekoha.

[1] “Lugar onde se é”, como se referem os Guarani e Kaiowá à suas terras ancestrais.


[1] Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, organização legítima e representativa dos povos indígenas brasileiras.

[2] “Terra sagrada” em guarani.

[3] Extremo sul do Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai.


[1] Afirmação realizada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro durante evento literário no Rio de Janeiro em 2014.

[2] Consistem em duas etnias distintas, que ocupam faixa territorial semelhante e compartilham de histórico recente em comum no que diz respeito à desapropriação de suas terras. Ademais, os Kaiowá correspondem aos Pai Tavyerã, como são conhecidos no Paraguai.

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