Seção Popular do Sindicato Geral Autônomo de Santa Catarina
“Dois de novembro, céu nublado, carregado
Ao lado do túmulo relembro o chegado
A garoa no meu rosto se mistura às lágrimas
A lembrança de vidas que foram arrancadas, precocemente
A maioria inocentes ou não
Quem somos nós pra julgar ou derrubar um irmão
Cemitério lotado, parente revoltado” (Atitude Feminina)
Um ano de duras perdas para a classe trabalhadora
A classe trabalhadora é forçada cotidianamente a se “acostumar” com as perdas e com as sequelas psicológicas e emocionais que elas trazem, mas esse ano superou tudo o que já vivenciamos nesse século. Chegamos neste dia de finados com cerca de 160 mil vidas ceifadas pelo coronavírus e pela omissão genocida dos governantes, com aumento diário de 433 novos óbitos, em média. Por trás desses números encontra-se uma verdade avassaladora: há quase um ano a classe trabalhadora está vivendo em luto cotidiano. Se apenas considerarmos as vítimas diretas da pandemia, e imaginarmos que para cada uma das 160 mil vidas perdidas temos de uma a dez pessoas de luto, dá pra ter noção do quão significativo é esse 02 de novembro de 2020 para várias comunidades e famílias espalhadas por todo o país. Para além dos números, há um fator que deixa esse dia ainda mais delicado para as famílias brasileiras: a impossibilidade de uma despedida digna. Alguns não puderam acompanhar seus familiares e amigos na UTI, outros não puderam ver pela última vez seus entes queridos devido aos caixões lacrados. Alguns nem sequer puderam velar os corpos de seus mortos, enquanto outros ainda tiveram que assistir seus parentes serem enterrados em valas comuns. Sabemos que essas e muitas outras circunstâncias esmagadoras da dignidade humana ocorreram de norte à sul.
Como se não bastasse, para além das mortes diretas causadas pela pandemia, a classe trabalhadora teve que suportar também as mortes indiretas relacionadas com a conjuntura pandêmica. Estado e capital aproveitaram a pandemia para avançar a política genocida sobre a periferia, os povos indígenas, quilombolas e camponeses em todo o Brasil. Nesse período a Polícia Militar superou seus próprios recordes de letalidade em diversos estados do país. Somente no primeiro semestre de 2020 foram oficialmente 3.148 pessoas mortas pela PM em todo o território nacional (sem contar os mortos por milícias e grupos de extermínio compostos em sua grande maioria por policiais). No campo a violência também se intensificou, ceifando a vida de camponeses, militantes de movimentos sociais rurais, quilombolas e indígenas A pandemia e o clima de impunidade abriram terreno propício para grileiros, garimpeiros e madeireiros avançarem sobre áreas protegidas, intensificando conflitos e criando vetores de contágio, especialmente na Amazônia. Segundo pesquisa publicada pela Folha, nos municípios que registram desmatamento e garimpo ilegal, os casos do novo coronavírus subiram quase 180%, em média.
Por outro lado, a necessidade do isolamento social com reclusão dentro de casa, somado à cultura machista impregnada em toda a sociedade, gerou aumento significativo da violência doméstica e das taxas de feminicídio (assassinato de mulheres). Segundo uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), as taxas de feminicídio cresceram 22,2% entre março e abril deste ano em 12 estados do país, em comparação com o mesmo período no ano passado.
Por fim, diversos fatores aprofundados pela pandemia, da crise econômica à sensação generalizada de insegurança social, geraram também aumento no registro de atendimentos referentes à tentativas de suicídio. No Brasil, são em média 12 mil pessoas que tiram a própria vida por ano. Apesar de ainda não termos um número consolidado de casos nesse ano (a última pesquisa é de 2018), especialistas apontam que certamente esse número tende a aumentar, devido à teoria dos 4Ds -Depressão, Desamparo, Desesperança e Desespero – que foram brutalmente potencializados nos últimos meses.
Os militantes da causa do povo que ainda não estão em movimento junto à suas bases, devem ter ciência que no retorno à uma suposta “normalidade” irão encontrar em seus locais de atuação (trabalho, estudo e moradia) companheiras e companheiros devastados pelas perdas e sequelas físicas e psicológicas decorrentes desse momento de crise social, o que tende a piorar. Já há previsões que indicam que cerca de 115 milhões de pessoas cairão abaixo da linha da pobreza em todo o mundo, enquanto a fortuna dos bilionários já cresceu em 27%. Esta contradição expressa não só a verdadeira face do capitalismo, mas também mostra que as bases sociais populares estarão extremamente fragilizadas economicamente. No Brasil a pobreza extrema já vem aumentando nos últimos cinco anos e continua crescendo. De acordo com dados da PNAD, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019 13,88 milhões de brasileiros estavam na linha da pobreza extrema, o que representa cerca de 170 mil a mais do que no ano de 2018. Este é um prato cheio para o aumento da superexploração do proletariado marginal por parte dos patrões, além de ser terreno propício para o aprofundamento de práticas oportunistas como assistencialismo/clientelismo político. Por fim, indica que o problema danecessidade de emprego de tempo para subsistência X necessidade de emprego de tempo na organização da luta, que já configura uma barreira a ser superada na organização do proletariado marginal, agora será um desafio ainda maior para as organizações políticas.
Certamente, esse feriado de finados será um dos mais difíceis para a classe trabalhadora brasileira. Além de carregar a dor da perda de entes vitimados pela Covid-19, estamos lidando com a perda de outros milhares levados pelas atrocidades da sociedade capitalista. Porém, neste dia 02 de novembro devemos relembrar nossos mortos, e da memória deles tirar forças para seguir, pois esse é o significado do dia dos finados.
Da memória dos nossos, tirar a força para seguir em luta: ritos coletivos para lidar com a morte
O cuidado com os mortos está presente em toda a história da humanidade e em todas as culturas, crenças e religiões. Das pirâmides do Egito às urnas funerárias de povos indígenas das Américas, da Umbanda ao Islamismo, do ateu ao crente, todos os povos sempre tiveram e mantiveram práticas de despedida e de homenagem à memória dos seus mortos. A morte é o destino natural da vida, destino obrigatório para todo ser vivo na terra, e os ritos coletivos são parte da maneira que encontramos para lidar com os ciclos da vida, compartilhar e vivenciar o sentimento de perda, e transformar a dor em celebração da vida, daqueles que se foram e daqueles que ficaram.
O “dia dos finados” tem sua origem no calendário católico e vem sendo celebrado há mais de mil anos na Europa. Originalmente o feriado acontecia em 01 de novembro, mas como no Brasil esse dia já estava reservado para a Festa de Todos os Santos, o dia de finados passou para o dia seguinte, 2 de novembro. Muitas culturas, como a nossa, possuem esse dia da celebração dos mortos, dia de honrar e preservar a memória de entes queridos já falecidos. Na Espanha, um dos hábitos das famílias da classe trabalhadora no dia dos finados é a preparação de um doce chamado “osso dos santos” para comerem em família, e levar flores à noite para seus mortos. Na Guatemala as famílias da classe trabalhadora nesse dia soltam pipas como modo de chegar mais perto do céu, costume este influenciado pela cultura indígena. No Camboja parte da comemoração é composta de corrida de búfalos e campeonatos de luta. No México, o famoso “Dia de Los Muertos” mobiliza a classe trabalhadora com muita música, bandeiras coloridas, altares com fotos de pessoas queridas que faleceram, flores, objetos pessoais dos homenageados, comida e bebida farta. Estes são apenas alguns dos diferentes modos como trabalhadoras e trabalhadores celebram o dia de finados pelo mundo, tirando forças para enfrentar juntos as adversidades e fortalecer o amor e os laços sociais entre aqueles que ficam, honrando a memória dos que se foram.
Em nosso país predomina o costume de visitação aos cemitérios e realização de cerimônias religiosas das mais diferentes matrizes. Devido à pandemia o dia de finados terá várias regras que variam de município para município, regras de segurança que vão desde o uso de máscara ao controle do número de pessoas. Em algumas cidades os cemitérios infelizmente permanecerão fechados. Mesmo assim, independente de onde ou de como iremos relembrar e homenagear nossos mortos, o mais importante é sabermos que não estamos passando por esse período nebuloso sozinhos, e nem que se trata de um sofrimento restrito às nossas famílias. Estamos atravessando esse martírio enquanto classe, um martírio da classe trabalhadora, não só do Brasil, mas de todo o mundo, das mortes em filas de hospitais aos caixões lacrados sem direito à velório, da insegurança social à sensação de impotência. Assim, a única possibilidade de atravessarmos esse momento tão duro é coletivamente, através do fortalecimento mútuo, do companheirismo e da afirmação da vida. Por mais deprimente que esteja a situação, enquanto classe já superamos outras situações extremas como esta, e sabemos da nossa força quando estamos unidos e dispostos à luta.
Nesse dia de Finados para além de lembrarmos e homenagearmos nossos familiares, amigos, amores, companheiras e companheiros de luta e militantes tombados lutando por um mundo justo, devemos transformar a dor em força coletiva. Que a morte de cada um dos nossos não tenha sido em vão, e que façamos de 2021 um ano de justiçamento e de luta contra todas essas atrocidades.